quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Memorial de leitura

Memorial de leitura
A saga de um aprendiz
O texto que se segue é uma viagem que faço no tempo, no tempo de minha infância, no tempo em que construi meu pacto com a leitura. Lembro-me dos primeiros dias em que tive contato com um livro. A cidade onde moro até hoje era bem mais simples, não tínhamos energia elétrica e a hora de dormir era à hora em que as aves se acomodavam. Eu tinha apenas sete anos. O livro tinha apenas quatro páginas e só trazia algumas figuras com sílabas abaixo. O sol já havia ido embora e a noite adentrava pelas brechas das janelas. Já não se podia enxergar as letras, minha mãe cuidadosamente colocava uma lamparina sobre a mesa, recomendando: _ Só mais um pouquinho, já é tarde”. Balbuciando, repetia as silabas como se fosse gaga e o som de minha voz me enchia de alegria. Mais tarde vim saber que o livro era o que havia sobrado de uma cartilha velha, que havia ajudado no aprendizado da leitura de meus irmãos. O gosto pela leitura começou aí, buscava incessantemente textos de qualquer gênero, livros dos meus irmãos mais velhos e, não só lia como também gostava de escrever. Na escola, livro era só o do mestre, o rigor e a disciplina falavam sem palavras. Para mudar de ano (série) a leitura e a sabatina dos verbos em todos os tempos e modos verbais mais a dos fatos fundamentais de matemática, eram feitos pela diretora e era o dia mais temido pelo alunos. Contudo as poesias e a hora do conto ficaram gravados em minha memória, minha primeiras leituras ouvidas. Das realmente lidas me lembro apenas de estar lendo no quadro, pois as do livro eram com a Diretora e como já disse o medo de ser reprovada sempre vinha em primeiro lugar, mas eu era sustentada pelos elogios da professora Júlia, que sempre me incentivou para ler, falar em público, e produzir composições, pois pensava ela, ter eu nascido para a comunicação. Assim venci o grupo, os quatro primeiros anos de minha escolaridade. Na época, ingressar na quinta série não era fácil, tinha que ser pela “admissão”, um ano de curso que selecionava os alunos para o ginásio, tempo compreendido entre a 5.ª e 8.ª séries. O curso era pago e minha família não podia arcar com as despesas. Fiquei atormentada.Chamava-se: Escola Comercial Nossa Senhora da Conceição. Fiz a matrícula dizendo que pagaria depois. Nunca paguei, nem a matrícula, nem as mensalidades. Todos os meses, a tesoureira falava alto e em bom som o nome dos devedores, eu sempre estava na lista, o maior número de meses sem pagamento era sempre o meu. Abaixava a cabeça e ouvia em silêncio. Não me conformava em ter que pagar para estudar.No fim do ano não pude fazer a prova por não ter pago as mensalidades,perdi o ano que estudei e também o próximo ano pois não tinha “cara” de entrar novamente sem pagar. Tinha 15 anos de idade, mas tudo dissipou-se quando soube que o governo acamparia as escolas e todos podiam estudar “sem pagar”. Matriculei-me e comecei o ginásio. Não cabia em mim de tanto alegria. A escola foi denominada Escola Estadual “Presidente João Goulart”. No sexto ano já lia para fichamento, o primeiro livro jamais esquecerei: “Papai Pernilongo” – apesar da vida de órfã da personagem, eu me imaginava em seu lugar, pois ela estudava em um bom colégio e passava férias em lugares que sonhava em conhecer. No sétimo ano o livro foi “Rosinha minha canoa” e daí por diante não pararam mais, li bastante da prosa romântica brasileira e tudo que encontrava pela frente. A leitura me fascinava. Lia escondido, revistas que traziam as fotonovelas: Revista “Capricho” e “Sétimo Céu” – minha irmã mais velha colecionava. Saí do interior e fui para a capital: Belo Horizonte. Aí sim, tudo era fascínio: o cinema, a biblioteca da escola e a biblioteca pública. Descobri que podia ter carteira de associado e pegar livros. Sempre que podia estava lá viajando na leitura. No 2.º grau, como era chamado, conheci: Clarice Lispector, Carlos Drumond de Andrade, Mário Quintana, esse último me levou ao delírio – “ Todos estes que aí estão/Atravancando o meu caminho,/Eles passarão,/Eu passarinho!” Conheci melhor o movimento de 1922 e todos aqueles que faziam parte dele, ou seja, fiz um mergulho na Literatura. (arte em geral). Ao concluir o 2.º grau, já com 22 anos de idade, me vi obrigada a trabalhar não desistindo de continuar os estudos. Tentei universidade pública, não consegui. Fui trabalhar em uma editora de lista telefônica e por minha sorte, todos da empresa faziam parte do “Círculo do livro”, uma associação que vendia livros e o pagamento era através de boleto. Associei-me claro, e então comecei a conhecer autores internacionais: “Best Sellers” entre outros que me muito ajudaram em minha leitura. Quando ingressei na Faculdade “Nilton Paiva” para fazer o curso de Secretariado Executivo Bilíngüe, abandonei um pouco a leitura por não ter tempo, era trabalho e trabalhos da Faculdade, mas sempre que podia lia alguma coisa. Em 1986, voltei para o interior e por ter concluído uma Faculdade da área de Comunicação pude lecionar Língua Portuguesa e Literatura na Escola do município, cobrindo uma licença sem vencimento de uma professora. Assim descobri minha vocação. Ser educadora. Mergulhei de cabeça e aí sim, lia, lia e lia livros sobre educação e livros de literatura. Precisava deles. Em 1992, já casada, com filhos, muito mais difícil para enfrentar trabalho e estudo, fui aprovada pelo vestibular da PUC, para cursar um Emergencial de Letras – licenciatura curta, só nas férias. O Curso durou 3 anos e depois mais 2 anos para a licenciatura plena. Formei em 1997 e até hoje leciono Língua Portuguesa que amo de paixão. Tenho lido bastante ultimamente, livros que me ajudam muito a refletir sobre as pessoas, sobre o mundo, sobre Deus, (“ A Cabana” de J.P. Young; “O Futuro da Humanidade” de August Cury . Ganhei de presente o livro “Os cem melhores contos do século XX” e estou ansiosa para começar, mas no momento tenho outra missão, ler junto com minha filha que fará o exame vestibular no final do ano, o livro “Mensagens” de Fernando Pessoa. Juntas lemos, discutimos e a compreensão é bem melhor. Amo a leitura e pretendo após aposentar da sala de aula, passar o meu tempo dentro de uma biblioteca. A saga de estar na condição de aprendiz nunca teve fim...
(Maria Estela dos Santos Ferraz. 2009.)

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